As distinções entre razão, vontade e emoções são apenas distinções, nunca separações. Na vida cotidiana, os processos humanos se dão sempre de modo integrado.
Por Paulo Vasconcelos Jacobina

Se, por outro
lado, fundamentássemos a convivência na pura vontade humana de poder,
como querem alguns nietszcherianos e niilistas contemporâneos, não
poderíamos senão declarar toda relação humana como uma busca de
dominação, e, portanto, opressiva – e eliminável. No entanto, o império
da vontade só pode gerar opressão e ditaduras, guerras e destruição.
É certo que o ser humano é uma unidade inseparável, e que estas
distinções entre “razão, vontade e emoções” são apenas distinções, nunca
separações. Na vida cotidiana, os processos humanos se dão sempre de
modo integrado. Se a separação absoluta não existe, a distinção entre
razão, vontade e emoções, porém, continua perfeitamente válida e deve
sempre ser defendida
.
No entanto, devido aos equívocos de alguns pensadores contemporâneos,
a razão passou a ser vista, nos meios sociais, acadêmicos e,
principalmente, políticos, com muita desconfiança, senão com desdém. O
processo passou a ser de separação mesmo: acusa-se a razão de
ser mera ocultação de discursos de poder, de dominação. A própria lógica
é acusada de ser um instrumento de domínio patriarcal e posta sob
suspeição. E a sociedade fica apenas com as “boas intenções” (daquelas
que os antigos sábios costumavam dizer que “pavimentam o caminho do
inferno”) para construir seu campo social e público de convivência.
Assim, no campo ético – que gera, por sua vez, o domínio jurídico -
restam-nos, como único fundamento público aceitável na forma estatal de
decidir, as emoções e a vontade dos grupos de influência politicamente
organizados. Vale dizer: a busca do bem comum é muitas vezes confundida
com a promoção das emoções positivas e a pressão desses grupos de
interesses setoriais. As decisões políticas mais graves são tomadas com
base num discurso do “coitadismo” (oh, coitadinhos dos animais que são
submetidos a testes laboratoriais; oh, coitadinhos dos que têm desejos
sexuais esdrúxulos, múltiplos ou polimorfos e não podem realizá-los na
forma de matrimônio; oh, coitadinhas das mulheres grávidas que não
querem ter filhos...) ou na necessidade de atendimento de grupos de
pressão que elevaram sua própria agenda a critério de bom-mocismo
através do domínio das mídias e da capacidade de organização social e
exclusão dos discordantes.
Paradoxalmente, são os grupos religiosos, especialmente de matriz
cristã, que estão apelando à confiança na razão como critério de
convivência social. E, a esta altura, quando apelam para os critérios
racionais, são muitas vezes acusados de atentar contra o estado laico.
Os exemplos se multiplicam. Quando os grupos cristãos declaram, por
exemplo, que há grande razoabilidade em defender que um nascituro tem já
uma identidade pessoal diversa daquela dos genitores, e portanto uma
dignidade própria, estão apelando para argumentos estritamente
razoáveis. Quando afirmam que, ainda que houvesse dúvida quanto a esta
identidade pessoal, seria prudente apelar para o princípio da precaução e
evitar eliminar fisicamente o embrião, que já guarda em si todas as
potências genéticas e biológicas do ser humano já nascido, estão de
igual maneira apelando para um princípio perfeitamente defensável
racionalmente.
Quando um médico cristão, por exemplo, alega que tem sérias razões
para negar-se a fazer um aborto numa paciente, fora das hipóteses do
duplo efeito em razão do risco real e iminente à vida da gestante, ele
está apelando a uma série de pressupostos estritamente racionais, como o
juramento de não fazer mal à vida e à integridade física de um ser
humano saudável.
São os defensores do aborto que apelam, nestes casos, a argumentos
baseados no voluntarismo (um suposto “direito de escolha” que
desconsidera todas estas posições de precaução, criando um falso dilema
entre a vontade da mãe e a vida do bebê, que são postos em “ponderação”
como se não fosse uma relação fisiológica, mas uma opressão política) e
denunciam a lógica impecável e as razões irrefutáveis dos médicos e dos
cristãos como “encobrimento de uma posição religiosa em prejuízo da
liberdade de escolha da mulher e da laicidade do Estado”, negando-lhes o
direito de argumentar, de pensar e de se conduzir de acordo com a
própria razão devidamente fundamentada. E em nome da defesa do direito individual de escolha –
portanto da própria vontade humana incondicionada racionalmente–
consideram-se legitimados a forçar o médico e os próprios cristãos a
desconsiderar suas razões e, violando suas consciências, agir em mera
obediência à norma estatal positiva liberadora de abortos.
O pensamento laicista agressivo tem se negado, também, v.g., a
reconhecer razoabilidade na mera afirmação de que as diversas formas de
relação sexual tem valor moral também diversamente ponderável, conforme
se ordenem ao compromisso permanente e indissolúvel, à abertura à vida e
à responsabilidade com a prole, por um lado, ou com a mera satisfação
da libido, por outro, e que, portanto, diferenciar condutas em razão da
orientação sexual é justo e concorre com o bem comum. Quando não têm
argumentos racionais para rebater esta afirmação tão lúcida,
simplesmente distribuem títulos de “fóbicos” aos que se negam, com bons
motivos racionais, a ver na libido o fundamento indiscriminado para a
convivência interpessoal, para negar, por exemplo, o mesmo valor aos
matrimônios cristãos e aos “casamentos” homo ou plurissexuais. Não é uma
discussão ponderada, portanto.
Curiosamente, foi Tomás de Aquino, um cristão, quem afirmou que a
“lei é uma ordenação da razão”, e portanto deve, além de ser
politicamente promulgada, poder ser defendida racionalmente para ter
valor coercitivo pleno; do lado laicista, seu maior pensador político,
Thomas Hobbes, afirmou simplesmente que “é a autoridade, não a verdade,
que faz a lei”, e portanto legitimou por si mesmo o poder, alijando
cruamente a razão da discussão política. Entre Thomas e Tomás, não há
dúvida de quem acredita na importância da razão para a correta ordenação
estatal. São os cristãos.
Fechando-se as portas estatais da argumentação razoável, resta aos
cristãos – e às pessoas que creem simplesmente no valor da razão -
defender a liberdade de religião como um biombo para continuar
acreditando na capacidade da razão humana para a convivência social e da
necessidade de viver em coerência com ela, contra a pressão política
prevalente de quem não tem razões, mas tem poder de pressão.
Mas é uma última retirada: quando nem sequer a cláusula da liberdade
de religião permitir a convivência defensável racionalmente – como
parece estar acontecendo quando o governo americano impõe aos grupos
religiosos o financiamento compulsório dos abortos dos seus empregados
em nome da laicidade estatal – é a razão humana que será destruída, e
com ela a própria liberdade de pensar razoavelmente. A história mostra
que em qualquer sociedade Deus é indestrutível, mas a razão humana, nem
sempre.
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